terça-feira, março 21
A escola como factor organizador do Espaço Urbano - Parte 1
Evolução Urbana
Texto de Paulo Pisco -Arquitecto
Vivemos actualmente num tempo em que o país se repensa de uma forma hiper critica. A realidade observável não corresponde à realidade expectável. Após trinta anos de regime democrático e quase vinte de integração europeia, não estamos como desejávamos. Apesar de muito se ter transformado nestes últimos anos, a comparação com os nossos países vizinhos europeus revela que algumas das nossas debilidades estruturais estão longe de estar ultrapassadas e que outras dificuldades se lhes juntaram fruto de um crescimento demasiado acelerado e pouco organizado. Neste momento de balanço geral, a educação, o ordenamento do território e o urbanismo encontram-se entre os factores estratégicos de desenvolvimento que urge reflectir de forma integrada. O estudo “A Escola como factor organizador do Espaço Urbano – O contexto das Capitais de Distrito”[1], no qual este artigo se baseia, surge como um contributo para esta reflexão.
Ao escolher a escola pública, por cobrir todo o território nacional, e nestas as com ensino secundário, por ter uma maior irradiação[2] e influência no espaço urbano envolvente, pretendíamos perceber como esta se interrelaciona com a cidade.
Espaço Urbano por excelência, a cidade em acentuado crescimento, quer a nível mundial quer nacional, reforça a sua ancestral influência na nossa cultura como construtora e difusora de “modelos” operativos e interpretativos da realidade existente. Neste contexto, as cidades médias, capitais de distrito permitem, simultaneamente, ter um olhar nacional sobre esta problemática e um “lastro histórico” maior acerca do ensino público secundário. Foi ai que a primeira “rede escolar” destes equipamentos, os antigos Lyceus[3] foram fundados. Ao todo foram analisadas 16 cidades com um total de 60 escolas secundárias públicas.
Vamos começar por apresentar a escola secundária no contexto das capitais de distrito onde enquadramos o desenvolvimento dos dois sistemas da fundação dos liceus aos nossos dias. Retratar o enquadramento legislativo actual permite-nos compreender a dinâmica contemporânea nas áreas que directamente estamos a tratar. A avaliação de diversas dimensões de desempenho, utilizando um conjunto de indicadores, permite compreender e caracterizar o actual “estado” do ensino – média das escolas secundárias em cada cidade – assim como do fenómeno urbano – 16 cidades em estudo – e se existe alguma relação entre os dois sistemas é o que analisamos no desempenho escolar versus desempenho urbano – tendências actuais nas capitais de distrito. Com o estudo de casos de duas escolas secundárias em Setúbal e das suas respectivas zonas de influência conseguimos reflectir, a uma outra escala, sobre a relação da Escola com o Espaço urbano. Por último apresentamos as principais conclusões deste estudo.
A Escola Secundária no Contexto das Capitais de Distrito
Dos primeiros Lyceus à I República
A escola como equipamento para servir toda uma comunidade é uma criação relativamente recente. A importância atribuída à educação/instrução surge de uma forma mais consistente como suporte à “revolução industrial”, onde, conjuntamente com os ideais difundidos pela Revolução Francesa (1789), já inspirados nas transformações liberais, primeiro em Inglaterra (1688) e depois nos Estados Unidos (1776), vão instituir uma nova crença: o desenvolvimento. Associado ao ideal democrático, onde os cidadãos são iguais perante a lei, o desenvolvimento apoiado na técnica e na ciência é para todos. Os Estados Modernos vão atribuir à escola a tarefa de difundir os instrumentos para a construção da modernidade. A esta expectativa vai-se juntar a vontade de transformar “formando” as crianças nos novos ideais. Todos os regimes, e não só os democráticos, vão apostar na educação como forma de difusão e de consolidação ideológica junto do “povo”. Ao Estado cabe, a maior parte do investimento necessário para esta tarefa. A modernidade impôs novas necessidades na organização do ensino, o que vai implicar o aparecimento de edifícios especificamente pensados para a realização desta tão determinante tarefa civilizacional. Foi durante o século XIX que o edifício específico para escola secundária começou a ser “construído”. As diversas formas e tipologias organizativas encontradas para este equipamento tentam adaptar-se a um urbanismo em constante mudança. A sua importância social, económica e política alteraram-se, ao longo do tempo, assim como a sua relação com a cidade.
A instalação “em edifício público apropriado” não se verificou tão cedo, tendo os liceus ocupado outros espaços. Os antigos conventos das extintas ordens religiosas foram a solução mais adoptada.[4] No entanto, o novo paradigma de ensino exigia edifícios próprios, conforme o protagonizado pelo modelo inspirador importado que criou um conjunto de pressupostos que veiculavam o espírito “republicano” herdeiro da Revolução Francesa. Independentemente do carácter ideológico, este modelo representou para toda a Europa um avanço em direcção à modernidade. Criou-se a ideia que o ensino “científico” e moderno só era efectivamente alcançado quando fosse ministrado em edifícios construídos em princípios “higienistas”. Estes irão marcar a escola relativamente “às exigências programáticas, construtivas e espaciais, e ao próprio ensino teórico e prático da higiene e da ginástica”[5]. Estes princípios alargaram-se a todos os níveis de ensino (primário, secundário e superior) exigindo à escola mais espaço, não só para as salas de aulas - onde figuravam obrigatoriamente o “laboratório” e o “ginásio” - mas que permitisse uma relação saudável do aluno com o seu meio envolvente, com zonas de recreio e de actividades ao ar livre, no interior do recinto escolar. Em Portugal só em 1860 vamos ter o primeiro edifício construído para este efeito, o Liceu Nacional de Aveiro, integrado no período desenvolvimentista que o “fontismo”[6] veio introduzir a partir de meados do século XIX. Marcado pela ideia de progresso tecnológico, este trouxe o aumento da mobilidade de pessoas e bens dentro do território nacional, com a introdução do comboio, que tornará o país mais “próximo” e ligará as capitais de distrito a territórios mais alargados, possibilitando um acesso mais fácil dentro das regiões.
A defesa da criação, implementação, melhoramentos e do estatuto destes equipamentos foi sempre muito defendida pelas “elites” locais, demonstrando a importância que o Liceu foi assumindo. Não só na formação de quadros, das cidades e regiões que serviam, mas também pela dinâmica que imprimiam ao comercio local. Funcionando em regime de semi-internato proporcionava uma nova fonte de rendimentos para a comunidade local, por força do deslocamento dos estudantes da suas terras para junto da escola. Implicava toda uma logística agregada, desde o quarto à alimentação, passando pelas “explicações”- permitindo um suplemento salarial ao professorado. Uma dinâmica que tornava este Liceus numa “pequenina universidade” [7].
Na primeira fase da concretização destes novos equipamentos, sente-se alguma indefinição na relação entre as exigências que este grau de ensino coloca com a sua concretização física. No entanto, do ponto de vista urbano os novos edifícios vão ao encontro de uma lógica urbanística que concilia a necessidade de abrir novas áreas de expansão da cidade, com necessidade de crescimento, salubridade e higiene que a escola propunha. Ao aplicar um traçado que contempla todas as valências necessárias ao progresso, as novas frentes de urbanização mantinham com a cidade existente uma relação de continuidade. Nas cidades com maior crescimento os novos equipamentos escolares, quase todos fora da cidade consolidada, vão ser um elemento de articulação com o novo tecido urbano. Apesar de as “Avenidas” suportarem grandes operações urbanísticas em Lisboa e Porto, mais industrializadas, as outras cidades “só conhecem a Avenida da Estação ou do Liceu”[8]. Normalmente situada no “exterior” da cidade consolidada, era necessário criar uma ligação franca entre a estação e o seu centro, onde se vêm a instalar a “burguesia” urbana, que necessitava de novos espaços para edificarem as suas moradias. É o caso das Avenidas: Portela, em Setúbal, Lourenço Peixinho, em Aveiro ou dos Combatentes em Viana do Castelo.
A actividade urbanística, no início do século XX, esteve relativamente adormecida. Os problemas gerados pela instabilidade politica – queda da monarquia (1910) com a instauração da 1ª República e o golpe de estado de 28 de Maio de 1926, que conduziu ao Estado Novo - acentuados pela primeira guerra mundial, que agrava as dificuldades económicas, não dão grande margem de manobra para investimentos de longo prazo.
Estas dificuldades também se reflectem na construção dos novos Liceus. Será necessário à ditadura, saída do golpe militar de 1926, estabilizar para serem projectados e construídos um novo conjunto destes equipamentos. Na sua grande maioria continuarão instalados em antigos conventos ou seminários, alguns deles adaptados aos novos programas, mas quase sempre, de forma “insuficiente”.
O Estado Novo – da fundação aos anos 60
Numa primeira fase o “Governo da Ditadura Militar procura resolver o problema dos edifícios liceais, que se vinha agravando em várias localidades”[9]. Logo em 1928 vai centralizar o processo da reforma das construções liceais o que vai permitir, através do financiamento público, a melhoria de alguns deles e a construção de três novos edifícios em cidades que ainda não tinham este tipo de equipamentos concebidos de raiz: Beja (1936), Lamego (1937) e Coimbra (1936) todos inaugurados na década de 30. Fruto de concursos públicos, estes, vão espelhar as duas tendências na linguagem arquitectónica que, vindo de trás, se irão sentir ao longo da ditadura. Podemos classificá-las como: o tradicional de pendor nacionalista versus o moderno de pendor internacional (apesar de serem diversas as nomenclaturas dadas). No primeiro grupo temos o Liceu de Lamego (Conttinelli Telmo) e no segundo, Beja (Cristino da Silva) e Coimbra (Carlos Ramos). Esta divisão é mais marcada ao nível da formalização do desenho da fachada, onde uns pretendem dar um “ar Lamego”, os outros pretendem assumir uma expressão “funcionalista” decorrente do “espírito do tempo”. Apesar de não existirem grandes diferenças quer na sua organização espacial quer na relação com a cidade, o que naturalmente decorria do “programa-tipo” que considera o liceu como uma “máquina de ensinar”[10], e da importância que estes equipamentos têm como símbolos da afirmação do novo regime. A sua construção é sinónimo de desenvolvimento, tornada explicita pela sua presença “monumental” no tecido urbano. Nas cidades de província, pouco desenvolvidas, estes assumem uma marca mais expressiva. Esta monumentalidade, independentemente do “estilo” formal adoptado, marcará estes edifícios na sua relação com a cidade, pelo menos até à década de 60.
Do ponto de vista urbanístico Etienne De Groer, marcou o crescimento das cidades capitais de distrito, quer por acção directa quer pela influência que terá em outros urbanistas portugueses, nomeadamente Faria da Costa e João Aguiar. Todas as capitais de distrito tiveram os Planos de Urbanização, impulsionadas por Duarte Pacheco, o “Engenheiro Ministro” da Obras públicas de então, que vai promover uma vaga de planos nunca antes vista no país. Estas propostas de expansão, segundo Margarida Souza Lôbo estão sempre “numa permanente dialéctica entre a consolidação e reestruturação do tecido existente, fechando ou redesenhando quarteirões, rectificando alinhamentos e rasgando eixos viários principais, e a proposta de uma cidade alternativa, de baixa densidade, onde predomine a habitação unifamiliar e os espaços verdes, com uma rede viária bem hierarquizada que garanta a tranquilidade e privacidade das novas áreas residenciais, o urbanista tenta a conciliação entre o urbanismo formal e uma imagem fortemente influenciada pelo desenho da cidade-jardim”.[11] Muitos destes planos não se chegam a concretizar integralmente mas o seu desenho marca a cidade conjuntamente com uma série de equipamentos, em que os edifícios escolares desempenham um papel determinante, acompanhados pelos edifícios dos correios, tribunais, etc. Nas cidades de província, ainda hoje, se sente esse período da história do nosso crescimento urbano, especialmente nas capitais de distrito pela importância administrativa. Nesta época, as cidades ainda não estão sujeitas à pressão demográfica, que se sentirá a partir dos anos 60, o que permitiu ao poder local “controlar” o espaço público junto à sede de concelho. Mesmo não respeitando integralmente o planeado.
Na mesma época desenvolve-se em Lisboa o “Plano de Alvalade”, do urbanista Faria da Costa, que se constitui como “um novo conceito de organização da cidade, baseando-se na unidade de vizinhança, que, como tal, era constituída em volta da escola como núcleo central”[12]. A escola é, aqui a unidade base de todo o plano. Tendo sido um caso único, na sua dimensão, de integração entre planeamento escolar e urbano em Portugal, não fez “escola” no nosso urbanismo. Mas tem pela reconhecida qualidade enquanto plano que se tornou bairro, a capacidade de evidenciar as suas virtualidades.
O Estado Novo – os últimos anos
A partir da década de 60 vamos assistir ao aumento expressivo do número de alunos no sistema de ensino. Era um tempo de crescimento económico. Apesar do “imobilismo” que caracterizava o regime, não podia ficar imune às pressões, externas e internas, para o desenvolvimento do país. Em 1964 dá-se o aumento da escolaridade obrigatória para seis anos, inicialmente como 5º e 6ºclasse, tendo no final da década passado a integrar o ensino preparatório como 1º e 2 ano. Ministrados conjuntamente nos liceus e escolas comerciais e industriais.
A construção de raiz de novos liceus ou a sua mudança, como é o caso de Leiria, que vê o seu edifício do século XIX substituído por um novo “fora do aglomerado”, vai ser uma constante. Algumas capitais de distrito, só nesta década vão conhecer estes novos equipamentos, é o caso de: Bragança (1969) e Guarda (1970). Estes anos continuarão a ser de grande investimento na expansão do parque escolar. Na distribuição geográfica continua-se a privilegiar a instalação nos principais centros urbanos – capitais de distrito – mas fora deles começam a aparecer escolas “preparatórias” e até ”secundárias”, especialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (Liceu Nacional da Amadora e Liceu Nacional de Matosinhos), mas também em cidades como a Figueira da Foz e Covilhã que já possuíam estas instituições, tendo sido substituídos os respectivos edifícios.
Nestas construções vão-se tornar explícitos dois tipos de abordagem em termos de projecto/construção destes equipamentos. Na publicação “Novas Instalações para o Ensino construídas entre 1968 e 1972” [13] feitas pelo regime, podemos pressentir essa transformação: “A maioria das escolas do Ciclo Preparatório e dos Liceus apresentados – exceptuando-se aqueles que foram concluídos nos primeiros anos do período considerado -,foram executados obedecendo a projectos-tipo, normalizados e facilmente adaptáveis aos terrenos, permitindo, portanto, uma aplicação repetitiva e obedecendo a uma concepção que reúne num bloco central todas as actividades de administração e sociais, ao qual são criteriosamente articulados outros blocos, especialmente projectados para neles se agruparem as áreas de ensino”. Estes novos projectos-tipo “normalizados”, “adaptáveis” e com “aplicação repetitiva”, vão modificar a relação que, genericamente estes equipamentos tiveram com a cidade durante todos estes anos, constituindo, independentemente da linguagem formal, referências urbanas. O desejo de fugir à “monumentalidade” procurada pelo regime para os seus equipamentos mais relevantes conjugado com as novas “pedagogias”, vai permitir instituir uma prática projectual “muito regulamentada” que torna este espaços mais pensados para “dentro” do que para fora, perdendo na sua relação com a cidade.
Responder rapidamente ao número crescente de alunos, obriga a uma aceleração nas decisões acentuado estas tendências. Os terrenos para a sua implantação, muitas vezes inadequados e a fraca capacidade de previsão do seu espaço envolvente, pouco controlado em termos “urbanísticos”, degradam a qualidade destes equipamentos com o espaço público urbano envolvente. Acentuado pelo desinteresse generalizado a que a Administração, central e municipal, “votam ao planeamento municipal”[14]. Como “consequência do crescimento não regulado, as principais zonas urbanas cresceram desde os anos 60 de forma anárquica, assistindo-se ao abaixamento da qualidade de vida dos indivíduos e à degradação do meio ambiente”.[15] A residência é instalada massivamente sem os respectivos equipamentos e serviços necessários ao suporte da comunidade. O que conduziu a um “aumento das situações de carência e saturação das infraestruturas” [16] porque estas não estavam programadas para a utilização a que foram sujeitas. O incremento de transportes públicos e particulares, assim como a terciarização dos centros das cidades, levou ao início de um processo mais rápido de ocupação das zonas envolventes dos núcleos urbanos consolidados: em áreas periurbanas. O aumento do transporte individual vai acentuar esta tendência ao longo dos próximos anos. As novas zonas habitacionais vão continuar a resolver o seu quotidiano no “centro urbano”. A casa é só para dormir. Os movimentos pendulares vão-se acentuar, à imagem de outros países, a partir da década de 60 até aos nossos dias. As próximas décadas serão muito marcadas por este conjunto de realidades.
A Democratização do Ensino – os anos de crescimento acelerado
Só com Veiga Simão[17], nos últimos anos do Estado Novo, é que se chega à “democratização do ensino”, apesar da ditadura. Nesta fase final do regime fez-se um verdadeiro esforço quer ao nível das construções escolares quer da formação de professores no sentido de dar cumprimento a este objectivo. A partir de Abril de 1974, à democratização do ensino juntamos o regresso de meio milhão de portugueses das ex-colónias ultramarinas. O que viria a pressionar, ainda mais, o já lotado parque escolar.
Em meados da década de 70 é criado o ensino secundário unificado acabando com as duas tradicionais vias: a “liceal” e a “técnica”. Estas escolas são agora todas secundárias, sem distinção. O que durante anos se tentou evitar, o ensino para todos, vai concretizar-se de forma acelerada e no meio de um processo de transição para um novo regime, onde o poder “estava na rua” e as orientações politicas eram mudadas a cada nova manifestação. Ou, mais tarde, a cada nova “reforma do ensino”. Conforme refere António Barreto “esta universalização do sistema educativo não permite, todavia, conclusões sobre a qualidade do mesmo”. Existe, desde então, a ideia de que um crescimento acelerado trouxe alguma perda de qualidade ao ensino. No entanto, é nesta década que “a cobertura integral da população jovem, pelo sistema educativo”[18] se concretiza. Esta dinâmica no sistema de ensino vai influenciar negativamente a relação da escola com o espaço urbano.
Á aceleração existente decorrente das mudanças económicas e sociais dos anos 60, juntamos uma mudança política que vai contribuir para alterações ainda mais profundas na sociedade portuguesa, no seu território e de forma particular nas suas cidades. Principalmente nas de maior dinâmica demográfica. De acordo com Henrique Albergaria[19] é durante a década de 70 que se regista a maior variação positiva (13,7%) no aumento da população em Portugal. Em parte porque a emigração dos anos 60 reduziu substancialmente e também porque se verificou, como já referimos, um regresso massivo do ultramar após 1974. Estas pessoas concentraram-se fundamentalmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e nas restantes Capitais de Distrito do Continente. De acordo com o mesmo autor, para a mesma década estas Capitais de Distrito, registam uma variação de 31,4%, que representou um aumento efectivo de 131 mil habitantes o que representou um acréscimo considerável para núcleos urbanos com esta dimensão. O fenómeno representou uma mudança social profunda e obrigou a respostas que conduziram a um crescimento urbano e um aumento da rede escolar acelerado e pouco ou mal planeado. A fraca tradição e cultura de planeamento e o novo poder autárquico democrático com um insuficiente corpo técnico colocou a administração num papel essencialmente reactivo, sem conseguir responder a este conjunto de pressões.
Na iniciativa pública deu-se prioridade à habitação. As carências a este nível eram muito sentidas, especialmente em cidades onde o crescimento demográfico foi mais acentuado. É, no entanto, a outros agentes imobiliários que cabe tomar grande parte da iniciativa. Como refere Teresa Barata Salgueiro, “a promoção da habitação é feita quase integralmente pela iniciativa privada, que produziu 91% dos fogos concluídos entre 1971 e 80 pelo que em 1981, apenas 4,5% do parque habitacional era propriedade do Estado, autarquias ou organismos públicos ou semi-públicos”.[20] A Administração como condutora do planeamento também não consegue ter um papel muito eficaz estando do lado da iniciativa privada, proprietários dos terrenos e promotores imobiliários, a condução do processo de urbanização.
Neste contexto urbano os equipamentos escolares vão ser sujeitos a uma forte pressão. Como resposta temos um conjunto de novos estabelecimentos, muitos com carácter provisório, assim como a ampliação dos existentes, através de anexos. Prática corrente até meados de 80. Se a tudo isto juntarmos a deficiente articulação entre o ME e os municípios temos um quadro do que se passou nos últimos anos da ditadura e nos primeiros anos do regime democrático em relação às construções escolares. A escolha de terrenos para a instalação das escolas quer do ponto de vista técnico quer da sua localização urbana, assim como os projectos-tipo sem a adaptação necessária às condições específicas do “lugar” caracterizam esta época. O que marcou uma relação entre a escola e a cidade pouco articulada do ponto de vista urbanístico e onde a qualidade arquitectónica dos edifícios contribuiu para o “empobrecimento” do papel simbólico que esses equipamentos tiveram durante muitos anos.
A estabilização da procura
Vários acontecimentos marcam uma mudança estrutural, a diversos níveis, a partir de meados da década de 80. O crescimento demográfico do país estabiliza. O que significa que apesar de se continuar a verificar um aumento das taxas de escolarização, começamos a ter uma diminuição do número de crianças em idade escolar que se deve à quebra na natalidade[21]. Em Janeiro de 1986 dá-se a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE). No mesmo ano o Parlamento aprova a Lei de Bases do Sistema Educativo, ainda em vigor, que vai aumentar a escolaridade obrigatória de 6 para 9 anos. A estabilidade politica também é um factor novo que irá contribuir para um surto de crescimento no país onde um conjunto de infraestruturas e de equipamentos irá surgir. Apoiado pelos fundos estruturais o Estado vai poder aproximar o nosso padrão de vida ao dos restantes estados membros.
O emprego por sectores de actividade altera-se substancialmente. Vamos assistir a grandes transformações na estrutura produtiva, que se sentem desde os anos 60 mas que se acentuam. O sector primário quase desaparece nas capitais de distrito, aumentado consideravelmente o terciário. A transformação profunda a que a população do país foi sujeita vai, naturalmente, conduzir a uma modificação nos hábitos e modos de vida. O abandono acelerado do “mundo rural” continua a aumentar a população urbana, até aos nossos dias. A vida urbana vai modificar-se. O aumento dos rendimentos disponíveis, que será reforçado pelo acesso ao crédito bancário, permite a mudança nos hábitos de consumo, onde podemos incluir a aquisição de casa própria mais ou menos afastada “cidade consolidada”, que com a criação de novos “centros comerciais”, vai desertificando o “centro tradicional”. A passagem da habitação a terciário acentua esta tendência na cidade consolidada especialmente no centro. Com todas as consequências inerentes: Desertificação, aumento do tráfego urbano, insegurança urbana, etc.
No final da década 80 começa a existir um novo olhar sobre o parque escolar. Os anos da “quantidade” vão dar lugar à “qualidade”. Os projectos tipo, indiferenciados foram abandonados. O modelo arquitectónico tipo com uma adaptação ao lugar, dando mais atenção à sua integração urbana, vai ser a prática destes anos. No entanto, é na melhoria das estruturas existentes ou até na sua conclusão ou substituição de antigas instalações provisórias que se vai dar o maior investimento. Nos últimos anos verificamos o retomar do projecto único, quer por concurso público quer desenvolvido pelos serviços do ministério.
Nos anos 90 dão-se passos importantes no sentido de uma conjugação de interesses entre o planeamento dos dois sistemas: urbano e escolar. O impulso dado ao planeamento municipal torna mais clara a necessidade de uma articulação próxima entre planeamento escolar e urbano, primeiro através da Carta Escolar e actualmente com a Carta Educativa. Assim como novos conceitos que associam o ensino ao território. Tentando uma aproximação às populações a servir e institucionalizando práticas nas escolas que visam uma maior abertura à comunidade local e à sua participação. A gestão da escola, através de uma maior autonomia, vai permitir a assunção de responsabilidades a níveis mais próximos dos actores locais.
A diminuição do número de alunos inverte a evolução histórica dos equipamentos escolares levando ao encerramento de escolas. Não só em zonas rurais, que já vinha acontecendo, mas também em áreas urbanas, nomeadamente aquelas que estão junto dos centros históricos, onde se regista uma diminuição demográfica acentuada e um envelhecimento da população. Mas toda a rede escolar está actualmente a ser condicionada pela perda de população em idade escolar. O que está a acontecer na maioria das capitais de distrito pela acentuada diminuição da taxa de natalidade que continua a diminuir, conforme veremos na segunda parte deste artigo a publicar na próxima edição da Arquitectura e Vida.
(continua)
[1] Estudo realizado no âmbito da dissertação de Mestrado em Urbanística e Gestão do Território, do Instituto Superior Técnico, Universidade Técnica de Lisboa. Orientado por Professora Ana Tostões e Professor Jorge Baptista e Silva.
[2] Distância-tempo máximos entre a escola e os locais de residência dos alunos. Conceito definido DGAE – Direcção de Serviços para a Qualidade dos Equipamentos Educativos, Outubro 1999.
[3]Com o Decreto-Lei de 17 de Novembro de 1836, Passos Manuel funda os Lyceus.
[4] MONIZ, Gonçalo Canto, 2002, Arquitectura e instrução. 1836-1936: o Projecto Moderno do Liceu. Trabalho de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2002. pp. 34 e 35.
[5] MONIZ, Gonçalo Canto, 2002, op. cit. pp.23.
[6] António de Fontes Pereira de Melo foi Ministro da Fazenda (1851-52), Ministro das Obras Públicas (1852-56) e Presidente do Concelho (1871-77, 1878-79 e 1881-86).
[7] Expressão utilizada em vários escritos acerca deste assunto, em várias cidades. Ver NÓVOA, António e Santa-Clara, Ana Teresa (Coord.), 2003, op. cit. pp,69.
[8] SALGUEIRO, Teresa Barata, A Cidade em Portugal: Uma Geografia Urbana, Porto, Edições Afrontamento, 1992, op. cit. pp. 191.
[9] NÓVOA, António e Santa-Clara, Ana Teresa (Coord.), 2003, op. cit. pp,64.
[10] MONIZ, Gonçalo Canto, 2002, op. cit. pp, 109.
[11] LÔBO, Margarida de Sousa, Planos de Urbanização: A Época de Duarte Pacheco, FAUP/DGOTDU, 1995, pp. 170.
[12] FERREIRA, Victor Matias, A Cidade de Lisboa: de Capital do Império a Centro da Metrópole, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, pp.197.
[13] DIRECÇÃO- GERAL DAS CONSTRUÇÕES ESCOLARES, Novas Instalações para o ensino construídas entre 1968 e 1972, Ministério das Obras Públicas, Lisboa, 1973,pp.3.
[14] LAMAS, José M. Ressano Garcia, Morfologia Urbana e Desenho da Cidade, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, S.L., 1993. pp. 452.
[15] SALGUEIRO, Teresa Barata, 1992, op. cit. pp. 250.
[16] Idem.
[17] Ministro da Educação no Governo de Marcelo Caetano (1969-1974)
[18] BARRETO, António, Portugal 1960/1995: Indicadores Sociais, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Público, Lisboa, 1996, pp.39.
[19] ALBERGARIA, Henrique, A Dinâmica Populacional das Cidades do Continente Português, in Revista de Estatística, Lisboa, INE, 1999.
[20] SALGUEIRO, Teresa Barata, 1992, op. cit. pp. 247.
[21] GASPAR, Jorge, As dinâmicas de Contexto – Desenvolvimento Sustentável: As pessoas o Espaço, o Ambiente – População e Sistema Educativo in CARNEIRO, Roberto (Org.),O Futuro da Educação em Portugal – Tendências e Oportunidades – um estudo de reflexão prospectiva, Lisboa, Departamento de Avaliação Prospectiva e Planeamento, Maio 2001, pp.295.
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