sexta-feira, setembro 15

Dia de Bocage e da Cidade de Setúbal



O DESENGANO


Alma ferida e cega,

Que em grilhões vergonhosos

Adoras a mão ímpia que te entrega

A males tão cruéis e tão penosos,

Como os que sentem no maldito Averno

Os condenados entre o lume eterno;



Alma cega e perdida,

Que a doce liberdade,

O gosto, as horas, o descanso, a vida

Consagras à maligna divindade,

Antes ao monstro, que produz, que gera

Veneno inda pior que o de Megera,



Basta, faze em pedaços

(Porque a razão te grita)

Faze, que é tempo, esses indignos laços,

Essas cadeias vis. Ó alma aflita,

A virtude, a verdade, o Céu te valha;

Vence a terrível, infernal batalha!



Conhece o baixo objecto,

Que em triunfo te arrasta.

Cuidas que um meigo, deleitoso aspecto

Para dourar os teus excessos basta?

Cuidas que um belo riso, um ar benigno,

Filho da infâmia, de ternura é digno?



Que engano! A formosura

Sem modéstia, sem pejo,

Tédio, tédio merece, e não ternura.

Eia, pois, de um frenético desejo

Enfreia, apaga os ímpetos, a chama,

E lava a nódoa com que amor te infama.



Que afronta! Que vileza!

Alma triste, alma escrava

De uma profana, sensual beleza,

De uns olhos falsos donde Amor te crava

Mil setas, cuja ponta aguda e forte

Ervou no opaco Inferno a mão da Morte,



Rasga o véu da cegueira

Fatal que te alucina;

Observa a criminosa, a lisonjeira;

Observa a loba má, que te domina;

Vê seus dolosos beiços nacarados

Fartando peitos vis com vis agrados.



Contempla a desprezível:

De afagos nunca escassa,

Sem pudor, para todos é sensível;

Este chama, outro anima, aquele abraça;

Ei-la com frouxos ais, húmidos beijos,

Matando num minuto a mil desejos.



Olha aonde te abrasas:

Em torno dela, o Vício

Bate as lodosas peçonhentas asas;

E, qual submissa ovelha ao sacrifício,

Ele de Vénus ao altar nefando

A leva pela mão, de quando em quando.



As lágrimas que viste

Na pérfida, que adoras,

São gerais; os suspiros que lhe ouviste,

Não são teus, são comuns; alegres horas,

Como contigo, com mil outros passa.

Vê-lhe a baixeza, esquece-te da graça.



Por gosto e por costume,

Não por domar a ardência

Do teu negro, pestífero ciúme,

Te sacrifica os teus rivais na ausência,

Que, em favor das trições com que trafica,

N’ausência aos teus rivais te sacrifica.



Ó alma! Ó liberdade!

Eu vos sinto abaladas

Pelas vozes da rígida verdade.

Vossas cadeias, por Amor forjadas,

Desejais sacudir… Sim, já vos vejo

Olhar os ferros com horror, com pejo.



Estais já forcejando

Contra o peso insofrível.

Ó liberdade! Ó alma! Estais bramando

Com ânsia, com furor, crendo impossível

Romper, despedaçar tão fixos laços

Sem o socorro de celestes braços.



A fraca humanidade

Para tanto não basta.

Assim é; mas implore-se a piedade

De um Sacro Velho que os mortais afasta

Do quase inevitável precipício,

E ante quem treme o erro e pasma o vício.



Vai pois, Canção, procura o Desengano,

Ele socorre aqueles que o procuram,

Ele o bálsamo dá com que se curam

As feridas que faz Amor tirano.




Opera omnia, dir. Hernâni Cidade, preparação do texto e notas de José Gonçalo Herculano de Carvalho e António Salgado Júnior, vol.II, Lisboa : Bertrand, 1969

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